21 de out. de 2008

Flanelinhas em todo canto

Ser flanelinha e pedir esmola (em qualquer lugar), são as "profissões" mais comuns em Fortaleza.

FLANELINHAS "VENDEM" ESPAÇO PÚBLICO

O POVO (24/09/2007) - Mariana Toniatti
da Redação

A rua é pública, mas o ponto de trabalho do flanelinha é dele e ninguém tasca. Sem se declarar dono - o flanelinha sabe que está ocupando um espaço público -, demarca seu pedaço. Entre eles existe respeito mesmo sem papel assinado

Cada um tem seu pedaço. Por um código estranho à qualquer regra reconhecida legalmente, os estacionamentos da cidade, especialmente nos locais onde circula dinheiro, foram distribuídos entre os flanelinhas. Eles estão em todo lugar. Tanto que hoje, conseguir um ponto não é fácil. Há casos de venda, mas o pessoal evita entrar em detalhes. Na Beira Mar, palco das disputas mais acirradas entre flanelinhas, dizem os próprios, um ponto de 13 vagas não sai por menos de R$ 10 mil. "Cinco mil faço em um ano", diz Francisco Élder, 24, guardador de carro com ponto na avenida.

"Venderam um ponto na rua dos Tabajaras (Praia de Iracema). Quanto foi? Não sei", desconversa José Gerardo da Silva, 59, flanelinha no Dragão do Mar. A presidente da Associação dos Vigilantes de Veículos (AVV) Andréia Carvalho, conta que a venda de um setor é quase sempre negada. "O vigilante sabe que é estranho porque o espaço é público. Na metade dos casos em que constatamos troca de gente nos pontos, não comprovamos a venda". Já quiseram dar R$ 5 mil nas 13 vagas de Cícero Silva, 40. O ponto fica em local privilegiado, na avenida Almirante Tamandaré, colado nos bares do calçadão do Dragão. Tem o movimento do centro cultural sem os perigos do entorno.

Cícero negou. "Com R$ 5 mil não faço nada. Não dá para abrir um negócio". "A verdade é que quase ninguém quer vender. Aqui todo dia tenho minha mixaria e sabendo administrar dá para viver com tranqüilidade", diz José Claudenor, 32. Há 12 anos, ele trabalha nas vagas em frente à antiga loja da Camelo, ao lado do shopping Del Paseo. O irmão virou funcionário da loja e entregou o ponto para ele. Para complementar a renda com os carros, Claudenor vende coco. A máquina que mantém a água gelada foi comprada com os trocados que ganha "pastorando".

No estacionamento da rua Barbosa de Freitas, na esquina com a avenida Santos Dumont, os amigos e vizinhos José Roberto Almeida, 35, e Julio da Costa, 30, dividem as vagas. Os postes servem como demarcação dos limites. A dupla diz ganhar perto de R$ 600,00 por mês, pouco mais de um salário-mínimo e meio. Zé chegou menino. Na época, o ponto, bem menos movimentado, estava disponível. Ele saiu e voltou algumas vezes. Teve carteira assinada numa indústria e depois numa gráfica. Foi demitido. Voltou a ser vigilante de veículos.

Júlio chegou justamente para "segurar o ponto", garantir que ninguém tomasse para si o que já era do Zé. Não dá mais para conseguir um ponto como Zé conseguiu, chegando e tomando conta. "Tá tudo completo, não tem uma brechazinha", confirma Nelson Souza, 38, 15 como flanelinha na Praia do Futuro. Geralmente, os novatos herdam o ponto de algum parente ou amigo.

O cunhado de Edilson Ramos Filho, 32, comprou um carrinho de churrasco com o dinheiro do ponto. Virou ambulante e repassou as 25 vagas no estacionamento do Dragão do Mar para Edilson. Cristiano de Oliveira, 30, se deu bem. Há quatro meses recebeu as vagas do Banco do Brasil, na avenida Desembargador Moreira, do amigo Francisco. "Ele arrendou um táxi com dinheiro que juntava aqui", conta. O ponto é bom. Tem rotatividade. Cristiano vende jornais no sinal em frente ao banco há quase uma década. Agora, depois das 9h, pega a flanela e dobra o apurado do dia.

Há ainda um outro jeito de se estabelecer num ponto, pegar a vaga de um "vacilão". Flanelinhas que apavoram clientes, arranham carros, furam pneus ou cometem pequenos furtos não duram muito num ponto. Acabam abandonando o local ou sendo expulsos. José Rogério Fernandes, 27, divide com um amigo o setor que foi de um único flanelinha. "Ele roubou uma bicicleta", conta Rogério. Sem direito de fato, muito menos papel assinado, os flanelinhas se entendem e estabelecem uma lógica própria. Para eles, funciona.

- Domingo é o dia mais disputado na avenida Beira Mar. Encontrar uma vaga é difícil. Do Náutico até a Praça dos Estressados, os flanelinhas organizam uma fila dupla de carros desengatados. Os motoristas concordam em deixar o carro sem puxar o freio de mão. Empurrando os carros pra cá e pra lá, os flanelinhas vão abrindo espaço para que os veículos estacionados corretamente possam sair.

- "Tem uns folgados que acham ruim quando você não tem trocado, principalmente na Beira Mar. Tem que dar, se não ele arranha o seu carro". André Luiz Haegg, 36, empresário.

- No ponto de Antônio Lima e Francisco William, na Beira Mar, um ou outro morador de rua passa pedindo dinheiro. "A gente dá R$ 0,50, R$ 1,00 para inteirar o lanche ou a bebida. Dá logo para ele não 'embaçar´ no ponto", conta William.

> Na última quarta-feira, era dia de William trabalhar, mas Antônio alugou o ponto por R$ 6,00. "Estou precisando de dinheiro e ele liberou o ponto pra mim. Hoje faço uns R$ 20,00", disse Antônio.

Motoristas se sentem obrigados a pagar
O flanelinha se apropria do espaço público e deixa pouca margem para os clientes potenciais escolherem se querem ou não o serviço ofertado. Basta parar, lá vem alguém: "Tô de olho, doutor". O discurso da maioria é a de que não se exige dinheiro, muito menos uma quantia mínima. "Ninguém tem obrigação de dar. Pode ser R$ 0,15, aceito o que vier", diz Agenor de Araújo, 39, flanelinha na Praia do Futuro. Os que são antigos no ponto e trabalham durante o dia costumam mesmo ser menos agressivos na cobrança. "Não vou fazer confusão, né!? Preciso ficar aqui", explica Cristiano de Oliveira, 30, flanelinha num banco.

"Só tenho raiva de quem entra no carro correndo e sai voado, parece que é fugindo, sem dizer um obrigado, fica pra próxima", reclama José Ribamar Silva Pinto, 53, flanelinha na praça do Ferreira. À noite é mais fácil encontrar um flanelinha que desdenha a gorjeta ou estabelece um valor, como se a rua fosse estacionamento particular. "Indo embora da Praia de Iracema, dei menos de R$ 1,00 pro guardador e ele devolveu. Outro dia fui num show no Dragão e o flanelinha me entregou um papel escrito R$ 2,00. Tive que pagar adiantado", conta a publicitária Talita Guimarães.

O comerciante Jorge Albuquerque se sente obrigado a pagar assim que estaciona nas imediações da boate Mucuripe. "Eles cobram e eu pago, se não é pior". Há pouco mais de um mês, um flanelinha "pirata" insiste em receber adiantado de quem pára na Almirante Jaceguai, ao lado do Dragão do Mar. "Ele já levou dura da polícia, mas continua enchendo o saco dos clientes", conta o flanelinha Edilson Ramos. Histórias assim se repetem. "Reforçamos que se trata de espaço público, mas alguns reclamam do sol, do perigo, e querem ser recompensados sempre", diz a presidente da Associação dos Vigilantes de Veículos, Andréia Carvalho.

Código não permite invasão de território

Vez ou outra chega um penetra querendo roubar as vagas. Soa estranho, afinal, a rua é pública. Mas no código dos flanelinhas, invadir o setor do outro é grave. Lojistas, gerentes e a própria Polícia Militar protegem os flanelinhas conhecidos. "Somos referência, o pessoal quer gente de bem. Se insistir pra ficar aqui, a gente chama o gerente e a PM reforça", diz Raimundo Nonato da Silva, 30, que ficou com o estacionamento da Caixa Econômica depois que o antigo flanelinha foi expulso por furar pneus, há quatro anos.

José Ribamar Pinto, 53, flanelinha da Praça do Ferreira desde o tempo em que "a própria praça servia de estacionamento", abre o jogo: "Penetra a gente resolve no tapa". Para marcar território, José Eleonardo Pinto, 50, o tio Léo, deixa um "funcionário" no ponto aos domingos, seu dia de folga. José Gerardo da Silva, 59, flanelinha há pelo menos 20 anos, justifica as estratégias. "De primeiro, não tinha muito concorrente, dava pra girar. Hoje, se você fica pra lá e pra cá, perde o ponto rapidinho". Há diferentes formas de manutenção da "propriedade".

Enquanto José Roberto de Almeida trabalhou na gráfica, Júlio da Costa ocupou seu ponto sem dividir o faturamento, mas cedeu novamente as vagas ao Zé quando ele foi demitido e quis voltar. Agenor Alves de Araújo, 33, passou três anos em frente à barraca Itapariká, na Praia do Futuro, substituindo o flanelinha do ponto que sofreu um grave acidente de moto. Durante todo o tempo, dividiu com ele o que ganhava. O casal Aluisio e Ivoneide da Cruz trabalha como flanelinha na Praia do Futuro. Ela também é diarista. Ele virou flanelinha depois que a barraca onde trabalhava fechou.

Um lado da rua de acesso à praia pertence ao casal. Não havia ninguém quando chegaram. O outro é de um "senhor que arrendou" o espaço. Em troca, o casal divide o "apurado". Ivoneide diz que o pessoal respeita o setor do casal. "Está no cadastro", explica referindo-se ao cadastro feito na Associação dos Vigilantes de Veículos (AVV). Cícero Silva, 40, que tem ponto no Dragão do Mar, disputa constantemente com os "piratas", principalmente no sábado. Nesse dia tem feijoada a partir das 13 horas.

Cícero chega às 16 horas, como de costume, e encontra outros flanelinhas no local. Antes dele chegar, tudo bem, mas dali pra frente, a gorjeta dos carros, mesmo que sejam veículos estacionados antes de sua chegada, é dele. Há 12 anos, Cícero pagou R$ 420,00 em prestações e um bujão de gás ao flanelinha do setor. "O cara roubou um carro e abandonou o ponto por dois dias. Mesmo assim tive que pagar. É assim que funciona".